Lava-me os pés

No Evangelho de João (Jo 13, 1-20) temos um relato exclusivo desse evangelista cujo conteúdo traz, na força do gesto de Cristo, a sinteze do sentido de ser cristão. No final da cena, Jesus envia seus discípulos (v. 20), como fez tantas e tantas vezes, alertando que a missão que tem como objetivo claro seguir seu exemplo e fazer o que ele fez: “Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, també vós o façais” (v.15).

O texto inicia com a afirmação solene de que Jesus sabia que havia chegado a sua hora. Em João, a hora da glorificação é uma questão à parte, que perpassa todo o Evangelho. Sem entrar no mérito deste profundo aspecto que é uma das chaves desse Evangelho, chamamos a atenção para o fato de que Jesus tinha ciência de que havia chegado o momento. Este saber previamente o que estaria para acontecer também é colocado em destaque no momento em que Jesus é entregue aos soldados com a colaboração de Judas (cap. 18): “Sabendo Jesus tudo o que lhe aconteceria, adiantou-se e lhes disse: ‘A quem procurais?’” O que transparece nesse trecho é que Jesus já sabia da traição. Contudo, muito mais que isso, sabia tudo o que lhe aconteceria. Sabia que havia chegado sua hora e as consequências disto. Sabia a forma como os romanos resolviam as questões que lhes incomodavam. Ao longo da vida de Jesus, incontáveis foram as crucificações promovidas pelo Império Romano. É como que, sabendo o caráter repressor do Império que subjugava a Palestina, pudesse prever o que lhe aconteceria acaso se mantivesse firme em sua missão até as últimas consequências.

Jesus sabia o que lhe aconteceria, da mesma forma como tantas pessoas sabem o que vai lhes acontecer a partir do momento em que vêem suas vidas transformadas por um evento irreversível. É um saber que não se caracteriza por uma previsão minunciosa dos resultados, mas por ter ciência de que, doravante, a mudança em suas vidas será impactante. Inúmeras famílias, quando abaladas pela morte de um ente querido que lhes promovia o sustento, já sabem como se tornará mais difícil a vida. Incontáveis também são as pessoas que, como resultado de doenças ou acidentes, passam a ser portadoras de sequelas irreversíveis e já sabem que dalí em diante suas vidas não serão as mesmas. Há um sem número de pais que já sabem como lhes será muito mais desafiadora a educação de um filho que souberam ser usuário de drogas. Quantas e quantas pessoas, a partir de determinado fato ocorrido em suas vidas, já sabem que lhes será exigido uma dose a mais de paciência, uma carga a mais de persistência e uma porção muito maior de amor para levar a vida de cabeça erguida, apesar de tudo.

Jesus, o Mestre, sabendo tudo o que lhe ia acontecer, ao invés de esbravejar contra o mundo e desistir, levanta-se da mesa e põe-se a lavar os pés dos discípulos. Coloca-se a serviço. Faz aquilo para que veio ao mundo. Não recua, não esita. Mantém-se amoroso, disponível e verdadeiro. Mesmo sofrendo, mesmo passando por um momento de profunda agonia em que chegou a suar sangue, segue o seu caminho, sabendo que havia chegado a sua hora.

Depois de destacar a chegada da hora de Jesus, o texto continua, no mesmo versículo, afirmando que “tendo amado os seus, amou-os até o fim”. Jesus não deixou construções erguidas, livros escritos, instituições formadas… Ele deixou uma obra de amor. Não um amor abstrato, dirigido difusamente a todos, mas o amor concreto, realizado na vida daqueles que com ele viveram. Amou os seus até o fim. Na sequência o evangelista destaca a traição de Judas, mas isso não retira a validade do que se afirmara antes acerca do amor de Jesus, que foi dirigido a Judas também, até o fim, apesar de qualquer traição. Jesus, em vez de uma religião, fundou um grupo de amigos (Jo 15,15), para compartilhar da missão que recebeu do Pai, de revelar ao mundo o Seu amor.

Vamos ao núcleo do texto: Jesus, de bacia na mão, lavando e enxugando os pés dos discípulos. Chegando sua vez, Pedro, estupefato, impede Jesus e lhe indaga deixando entender que não seria papel do Mestre lavar os pés do discípulo. A isto Jesus lhe responde: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo” (v. 8).

Essa atitude de Jesus traz à memória outros dois momentos narrados nos Evangelhos que podem nos ajudar a compreender melhor o sentido desse diálogo entre Jesus e Pedro no lava-pés. No primeiro momento João, que batizava com água, é procurado por Jesus a fim de ser batizado por ele. Diante desta iniciativa de Jesus, a primeira reação do batista é recuar dizendo que ele é quem deveria ser batizado pelo Senhor. Porém, Jesus contorna a situação e recebe serenamente o batismo de João Batista. No segundo momento que queremos destacar, Jesus, estando na casa de um fariseu, teve seus pés lavados por uma mulher, que entrou sem ser convidada e banhou-os com suas lágrimas, secando-os com os cabelos (Lucas 7, 36-50). Diante desta cena o fariseu, dono da casa em que Jesus estava, reprovou a atitude de deixar-se tocar por uma pecadora.

Fazendo um paralelo vemos que Pedro, que era um pecador, não queria ter os seus pés lavados por Jesus. A mulher, por ser ela a pecadora, não poderia tocar os pés de Jesus e lavá-los da forma como fez. João Batista, por sua vez, não poderia batizar Jesus, pois entendia que ele é quem deveria ser batizado pelo Mestre. São três atitudes diferentes que possuem o mesmo pano de fundo. Nos três momentos Jesus é colocado em uma posição de superioridade, de hierarquia, num pedestal que o diferenciava tornando-o intocável. Em nenhum dos três momentos Jesus aceita o local em que querem colocá-lo como sendo maior, melhor, diferente. Ele se faz igual, irmão, servo.

A figura impactante de Jesus certamente movia sentimentos de reverência e veneração. Hoje, nossa fé no Filho de Deus nos leva à adoração. O que não pode ocorrer é uma adoração que o mantenha no pedestal, longe do coração e da vida real das pessoas.

Voltando ao texto do lava-pés, podemos nos aprofundar nos sentido do que Jesus fez, perguntando-nos em quais caminhos teriam passado os discípulos, por onde seus pés teriam pisado e o que neles estava sendo limpo pelo Senhor. Essa limpeza é colocada por Jesus a Pedro como uma necessidade imperiosa (“não terás parte comigo”), pois tratava-se não de um mero rebaixamento de Jesus. Não é rebaixamento, pois essa ideia está vinculada à hierarquia e superioridade daquele que se rebaixa. Trata-se de um movimento de igualdade. Jesus se faz igual a seus disícpulos, mesmo deixando claro que era mestre e Senhor. Era Senhor por que vinha do Pai e não por si mesmo. Ele, por si mesmo, era igual em tudo, menos no pecado (Hb 4,15).

Deixar que nossos pés sejam lavados por Jesus é permitir que sua Palavra venha retirar tudo aquilo que vamos acumulando em nossa vida quando andamos pelo caminho do pecado. A partir daí, em obediência ao Senhor, devemos fazer como ele fez, abaixando-nos em direção ao que precisa ser limpo em nossos irmãos, não para sermos superiores a eles, mas para sermos iguais. Não para nos rebaixarmos, mas para que eles se ergam. Jesus, ao invés de se rebaixar, fazia com que ficassem em pé todos os que se viam prostrados pela sua situação de vida.

A Igreja do Brasil, nesse ano de 2015, convidada por meio da Campanha da Fraternidade a renovar-se no serviço, oferece uma resposta ao envio de Jesus nos momentos em que se abaixa para alcançar os que sofrem, fazendo-se igual, numa atitude de serviço. Reconhecer-se igual na Pastoral Carcerária, Pastoral da Sobriedade, Pastoral do Menor. Ser igual no Movimento dos Vicentinos, no Amor Exigente, na Pastoral da Escuta, na Pastoral da Saúde, enfim… Para esta atitude é fundamental compreender que diante daquele que sofre, mesmo que ele tenha feito escolhas erradas na vida, não somos melhores. Podemos ter feito melhor, mas não somos melhores. Por várias questões que envolvem oportunidades, contextos de vida e as mais diversas situações, aquele que cumpriu a lei fez melhor do que aquele que não cumpriu. O que se manteve longe das drogas fez melhor do que aquele que se entregou ao vício. Quem gastou com responsabilidade seu salário fez melhor do que aquele que esbanjou. Quem respeitou sua família fez melhor do quem a traiu. Um fez melhor que o outro, isso é fato, mas um não é melhor que o outro. Por isso, o serviço da Igreja não é de rebaixamento, mas de igualdade, de amor entre irmãos.

Para lavarmos os pés dos nossos irmãos, primeiro temos que deixar que Jesus lave os nossos. A partir daí, a questão é ir até onde está a “sujeira” da vida deles, onde ocorrem os conflitos e as mazelas, compreendendo que não se trata de uma atitude de superioridade de quem quer ajudar o inferior, mas de diferentes caminhos que sujaram um pouco mais ou um pouco menos os pés daqueles que andam. Afinal, só não sujam os pés aqueles que não caminham.

Que possamos nos deixar lavar pelo Senhor, entregando a Ele a sujeira de nossos pés embarreados pelos caminhos da vida, a fim de que nosso testemunho seja verdadeira atitude de amor em relação a nossos irmãos, pois aí está o verdadeiro sentido de ser cristão.

Deixe um comentário