Jesus e Nicodemos

O Evangelho de João nos revela grandes mistérios dos ensinamentos de Cristo a partir de simples conversas de Jesus com pessoas que dele se aproximavam. Esse é o caso de Nicodemos, que ouviu da boca do Mestre a impactante afirmação de que devemos nascer de novo para vermos o Reino de Deus (Jo 3, 1-16)

Nicodemos e sua visão limitada sobre Jesus.

Nicodemos era um fariseu, qualificado no Evangelho como “um notável entre os judeus”. Sua conversa com Jesus inicia-se com uma explicação do motivo pelo qual ele acreditava que Jesus vinha da parte de Deus (v.2). Ou seja, Nicodemos procurava Jesus porque havia encontrado uma explicação para aceitar que ele vinha da parte de Deus, baseada nos sinais que realizava. Desta forma, primeiro Nicodemos tenta enquadrar Jesus no esquema religioso que, como fariseu, havia aprendido, apresentando uma justificativa aceitável para ser um possível seguidor, considerando sua posição de fariseu.

A fala de Jesus, que vem na sequência, demonstra que a compreensão de Nicodemos era limitada, pois uma mentalidade fechada naquele sistema religioso não poderia compreender a boa nova que Jesus trazia. Somente uma mudança profunda de mentalidade seria capaz de permitir que Nicodemos, e tantos outros como ele, pudessem perceber a realidade daquilo que Jesus ensinava. Nas palavras dele, “somente quem nascer de novo poderá ver o reino de Deus”.

Uma visão que inverte a ordem das coisas.

Para tentar compreender a afirmação de Jesus a Nicodemos, pode ser útil analisar alguns pontos sobre a mentalidade religiosa da época. A divisão do Templo de Jerusalém mostra-nos como era essa mentalidade: Pelo que se vê da forma como era dividido o Templo de Jerusalém, vemos que a crença era de que Deus estaria mais próximo do Sumo Sacerdote, que tinha acesso exclusivo ao “Santo dos Santos”, um espaço especialmente reservado naquela esplendorosa construção. Após ele, vinham os sacerdotes, que tinham o privilégio de aproximar-se do altar para os sacrifícios, demonstrando uma intimidade maior com Deus. Aos demais homens israelitas, somente era permitido assistirem de longe, por isso ficavam em um pátio para eles reservado. Em outro ambiente, separadas, estavam as mulheres, certamente com as crianças, pois não eram bem-vindas próximo ao altar dos sacrifícios. Desta maneira, formava-se a hierarquia entre Deus e os homens, tendo o Sumos Sacerdote dos judeus em uma ponta e as crianças na outra.

Quando Jesus fala a Nicodemos que era necessário nascer de novo para ver o Reino de Deus, não podemos perder de vista que seus ensinamentos viravam do avesso o conjunto social então formado pelas regras judaicas da época. Diante da citada hierarquia, da qual o Sumo Sacerdote ocupava a posição de maior importância e proximidade com Deus, Jesus olha para a outra ponta, na qual estão as crianças, desconsideradas e afastadas de Deus, e inverte totalmente a ordem das coisas. Veja-se que, para Jesus, quem não se converter e não se tornar como uma criança, não poderá entrar no Reino dos Céus (Mt, 18, 1-4). Disse mais: “aquele que se tornar pequenino como esta criança, será o maior no Reino dos Céus”, numa total inversão do entendimento que se tinha sobre a relação das pessoas com Deus.

Imagine como seria difícil para Nicodemos, um fariseu notável, aceitar que justamente as crianças, que nem podiam entrar no Templo de Jerusalém, pudessem ser as maiores no Reino de Deus. Somente com uma forte mudança de mentalidade, ou seja, com uma verdadeira conversão isso seria possível. Somente renascendo a partir do Espírito de Deus.

Batismo para mudança de mentalidade

No Evangelho de João, Jesus busca esclarecer a Nicodemos pregando o novo nascimento a partir da água e do espírito, no que hoje compreendemos ser uma clara alusão ao batismo. Mas, para falarmos de batismo, temos que nos remeter ao batismo que ele mesmo buscou nas águas do Rio Jordão, onde João pregava uma batismo cujo objetivo pode ser entendido como arrependimento, conversão ou até mesmo mudança de mentalidade.

Enquanto não conseguirmos ver nos elementos que compõem a simplicidade da vida de uma criança, a chave para entrarmos no Reino de Deus, seremos carecedores de uma profunda mudança de mentalidade que nos leve a um movimento irreversível de adesão incondicional à pessoa de Jesus. Lembremo-nos de que não se coloca vinho novo e barris velhos (Mt. 9,17) ou seja, a novidade do ensinamento de Jesus não entra numa cabeça fechada por uma visão religiosamente empobrecida pelo cumprimento cego de normas vazias, que não pretendem, em momento algum, conferir mais sentido à vida das pessoas.

Não há sinceridade em se buscar em Jesus a justificativa para as próprias convicções pessoais. Nascer de novo é abrir a mente para ver a vida a partir dos olhos de Deus, assim como Jesus. São Paulo também viu a necessidade de renovarmos nossa mente (Rm 12,1-2)

Nascer de novo… de novo.

A todo momento nos é dada a oportunidade de nascermos novamente, para dar continuidade a nosso processo de conversão. Podemos perceber no decurso da nossa história de vida, uma sequencialidade de diversos tempos diferentes, destinados ao crescimento pessoal em diversos aspectos. A criança, o jovem, o adulto, o velho… Os tempos da brincadeira, do namoro, do estudo, do trabalho e do descanso. Cada fase nos prepara para a próxima e o que fazemos em cada uma delas será fundamental em relação ao que viveremos na fase seguinte. Cada tempo de nossa vida nos prepara para o tempo seguinte.  Se no “final dos tempos” seremos julgados, conforme anuncia o Evangelho, não podemos esquecer que também o seremos ao final de cada tempo de nossa vida, pois, ao final de cada um deles, podemos sentir as marcas e as consequências do que fizemos com o tempo que passou.

Sempre há tempo de olharmos para o projeto mais puro que Deus tem para nós. Sempre podemos resgatar, no mais profundo de nosso ser, aquela criança totalmente entregue nas mãos de Deus, pois nos é dada a graça de nascer de novo, para que possamos fazer um tempo novo, a partir de uma vida nascida do alto, do espírito, para que a luz se manifeste em nossa vida e, assim, possamos ser dignos de ver, nessa vida e na próxima, o Reino de Deus.

Deixe um comentário